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quinta-feira, outubro 20, 2011

Regime aberto: ainda tem utilidade?

O art. 5º, inciso XLIV, estabelece quais as espécies de pena que o legislador pode eleger para punir determinados crimes. São elas: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.
O Código Penal e a legislação penal especial, em linhas gerais, empregam todas essas penas. A cada crime, estabelece-se uma sanção privativa de liberdade variável (graus mínimo e máximo); em alguns delitos – em especial aqueles com repercussão patrimonial -, estabelece-se ainda uma pena cumulativa de multa, regulada genericamente pelo art. 49 do Código Penal.
Também de forma genérica, os arts. 91 e 92 do CP estabelecem efeitos secundários das condenações, consistentes em perda de bens e direitos (perda de cargo, incapacidade para o exercício do poder familiar, inabilitação para dirigir).
Por fim, o art. 44 do Código Penal, alterado pela Lei nº 9.714/1998, estabelece as chamadas “penas substitutivas”, que consistem em sanções que não implicam em privação de liberdade, mas em restrição de direitos (prestação pecuniária, prestação de serviços à comunidade, limitação de final de semana etc.).
A relevante peculiaridade desta última espécie sancionatória, porém, é que, ao contrário das demais constitucionalmente previstas, as penas restritivas de direito não podem ser cumuladas com penas privativas de liberdade. É possível, assim, que alguém seja condenado a cumprir cinco anos de prisão e, além disso, sejam-lhe impingidas penas de multa, perda de cargo e de bens. Não é possível, porém, que a essas sanções se agregue a prestação de serviços à comunidade. Tal sanção – e as demais previstas no art. 44 do Código Penal – são “autônomas e substituem as privativas de liberdade“.
Assim, ao fixar a pena, o juiz avalia se o sentenciado preenche os requisitos (previstos no art. 44 do Código Penal) para obter a substituição de pena e, positiva essa conclusão, substitui (i. e., troca) a pena privativa de liberdade que havia aplicado por pena restritiva de direitos.
Por outro lado, sempre que o juiz fixa a pena privativa de liberdade, ele deve escolher qual o regime a ser imposto – e, em linhas gerais, essa escolha é feita de acordo com a quantidade de pena imposta, conforme determina o art. 33 do Código Penal. Portanto, em se tratando de réu primário, se a pena estabelecida for inferior a quatro anos, o regime eleito é o aberto; se ficar entre quatro e oito anos, o regime será o semiaberto; se superior a oito anos, regime fechado.
Também para se substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos leva-se em conta a quantidade de pena cominada: somente é possível a substituição se a pena for inferior a quatro anos, exceto em crimes culposos, quando é possível a substituição independentemente do quantum da pena.
Portanto, tem-se que, em regra, o réu que é condenado a cumprir pena em regime aberto tem também o direito a ter substituída sua sanção privativa de liberdade por outra restritiva de direitos.
E em que consiste a diferença entre o cumprimento da pena em regime aberto e o cumprimento da pena restritiva de direitos?
Na teoria, a pena em regime aberto deveria ser cumprida em casa de albergado: o apenado tem autorização para trabalhar durante o dia, retornando ao albergue ao fim do trabalho, recolhendo-se ali à noite e aos finais de semana.
Já no caso da pena restritiva de direitos, o sentenciado fica em casa e não sofre privação de liberdade; contudo, é obrigado a cumprir certas condições, como prestar serviços à comunidade ou pagar uma prestação pecuniária.
Portanto, em tese, de fato a substituição da pena privativa de liberdade em regime aberto por restritiva de direitos seria mais benéfica ao réu.
A realidade, porém, é outra. É que, passados vinte e seis anos da edição da Lei de Execuções Penais, são pouquíssimos os municípios do país que contam com casas do albergado. Em muitos casos, como não há vagas suficientes para detentos do regime semiaberto em colônias penais ou industriais, as casas de albergado existentes são utilizadas também para abrigar presos do semiaberto. Com isso, os detentos em regime aberto acabam recebendo o benefício da prisão domiciliar: comparecem em juízo e assumem o compromisso de se recolherem em suas residências no período noturno e em finais de semana. Em alguns locais, ainda se estabelece um compromisso extra de comparecimento do apenado, uma vez a cada um ou dois meses, em juízo, para fins de controle de pena.
Na realidade, portanto, tem-se que o preso em regime aberto não tem sua liberdade tolhida de forma alguma, sobretudo porque ninguém fiscaliza se o detento cumpre o compromisso de se recolher em sua residência no período noturno e aos finais de semana.
Para tentar tornar menos brandas as condições de cumprimento de pena em regime aberto em comarcas que não contam com casas do albergado, alguns magistrados, valendo-se do disposto no art. 115 da Lei de Execuções Penais (que permite ao juiz fixar outras condições não previstas em lei para o cumprimento da pena em regime aberto) têm exigido que os detentos nesse regime e que se submetam a prisão domiciliar também cumpram uma condição especial: prestar serviços à comunidade.
Com isso, compensa-se, de um lado, a falta de fiscalização do recolhimento domiciliar do apenado e, por outro, impõe-se a ele um gravame no sentido de se exigir alguma prestação a demonstrar senso de responsabilidade e empenho no processo de ressocialização.
Ocorre que essa prática – de fixar como condição geral do regime aberto a prestação de serviços à comunidade – se tranformou em objeto de controvérsia jurisprudencial.
No STJ, em particular há dois posicionamentos totalmente antagônicos: a 5ª Turma tem entendido ser possível ao juiz fixar como condição especial do regime aberto a prestação de serviços à comunidade (HC 162834); a 6ª Turma, por sua vez, entende ser impossível essa cumulação (HC 164056), uma vez que a prestação de serviços à comunidade é uma espécie dentre as penas restritivas de direitos, que são autônomas e substitutivas e, portanto, não podem ser inseridas dentro de uma pena privativa de liberdade.
A conclusão da 6ª Turma é juridicamente plausível,  sobretudo diante da sistemática empregada pelo legislador no que concerne à escolha das espécies de sanção empregadas. De fato, se as penas restritivas de direito são autônomas e substitutivas, não podem ser cumuladas com privativas de liberdade. A conclusão da 5ª Turma, por outro lado, procura observar a questão por um viés pragmático e realista: a não se permitir a fixação da prestação de serviços à comunidade para cumprimento de pena em regime aberto fora da casa do albergado, em verdade o apenado nesse regime não cumprirá pena alguma.
E é nesse último ponto que surge a indagação: nos moldes atuais, ainda tem utilidade o regime aberto?
De fato, nesse regime, não há retributividade, porque o réu não tem sua liberdade restrita (apenas de forma fictícia, porque ninguém fiscaliza se de fato ele se recolhe diariamente em sua residência após voltar do trabalho) e não desenvolve nenhuma outra atividade que contribua para sua ressocialização. Tampouco se exerce a função de prevenção geral da pena, porque salta aos olhos, aos demais cidadãos, que aquele que foi condenado a cumprir pena em regime aberto não cumpre, na verdade, pena alguma.
Nesse panorama, a prosperar a tese da 6ª Turma do STJ, no sentido da impossibilidade de fixação de prestação de serviços à comunidade como condição geral do regime aberto, mais um forte argumento surge a indicar que o regime aberto – na forma como o conhecemos hoje – cumpre uma função meramente figurativa, incômoda talvez.
É que, a partir dessa conclusão, temos o seguinte cenário na prática: o réu é condenado a cumprir, por exemplo, dois anos de prisão em regime aberto. Como não há casa de albergado na comarca, concede-se-lhe a possibilidade de cumprir pena em regime domiciliar, sem fixação de outras condições, como a prestação de serviços à comunidade. A sanção consistirá apenas em apresentar-se mensalmente em juízo.
No entanto, o art. 44 do Código Penal estabelece, em favor desse mesmo réu, um “benefício”: a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Por conta disso, o juiz deve substituir a pena que havia fixado em regime aberto (e que na prática implicaria na simples apresentação mensal do apenado) por outra restritiva de direitos, podendo eleger, dentre elas, a prestação de serviços à comunidade.
Pergunta-se: o que é mais benéfico ao réu, apresentar-se uma vez por mês no fórum ou prestar serviços por sete horas semanais, todas as semanas?
É evidente, pois, que a substituição de pena, neste caso, tem seu papel subvertido por conta da falta de estrutura para cumprimento da pena em regime aberto, convertendo-se de benefício em agravamento da sanção.
No entanto, ao sentenciado é dado escolher, ainda que de forma oblíqua, como pretende cumprir a sanção: basta que não cumpra a prestação de serviços à comunidade para que o magistrado converta a pena restritiva de direitos (em tese menos gravosa) por pena privativa de liberdade. No caso, portanto, restabelece-se o regime aberto e o réu não mais terá de trabalhar, passará a apenas se apresentar mensalmente em juízo.
No cotidiano do fórum, essa situação se repete comumemnte. Não raro, réus beneficiados com a substituição de pena requerem formalmente a revogação do benefício para que possam cumprir a sanção em regime aberto – e há vários outros que simplesmente não cumprem a prestação de serviços aguardando a conversão.
Resta claro, portanto, que na atual realidade, o regime aberto, além de não servir aos fins a que se destina (não pune, não educa e não ressocializa) ainda representa um relevante obstáculo no que concerne à efetividade das penas restritivas de direito, porque acaba estimulando seu descumprimento por parte de detentos.
A resposta, pois, ao questionamento que encabeça este post é simples: nas condições atualmente postas, o regime aberto, além de inútil, acaba por atrapalhar a execução das demais sanções. É hora de uma reformulação do sistema de cumprimento de penas privativas de liberdade, talvez extinguindo o regime aberto e mantendo apenas os regimes fechado e semiaberto, ou detando o regime aberto de condições outras que o tornem efetivamente mais gravoso que o cumprimento de penas restritivas de direito, estancando o esvaziamento destas últimas.

Fonte:Marcelo Bertasso

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